quinta-feira, 1 de outubro de 2015

No frigir dos ovos

A arte de relacionar-se requer que se lance mão a um misto de predicados a serem conjugados direta e transitivamente, como tolerância, jogo de cintura, empatia, capacidade de adequação, respeito, bom humor, criatividade, compreensão, desapego, entre outros. Fácil, não? Não! Não é nada fácil mesmo, a madame está certa aí, e é por isso que as relações sociais, sejam elas quais forem, andam sempre aos trancos, como se tropicássemos em tijolos dispostos sorrateiramente pelo caminho que, a princípio, parecia fluir tão fácil. E os tijolos, madame, os tijolos, eu sei que é isso que a senhora está pensando aí, sacudindo a cabeça, os tijolos, é verdade, os tijolos somos nós mesmos. A senhora tem razão.
E isso vale para qualquer tipo de relação humana. Entre casais, entre colegas de trabalho, em família, entre os amigos, entre confrades, entre sócios, entre grupos perenes e fortuitos como a junção de gentes em um elevador, enfim, tudo, né, madame? A senhora segue concordando comigo. Que bom, hoje estamos afinados, a coisa corre livre, fluindo. Adiante! Agora chegou a parte em que inserimos o exemplo ilustrativo da tese, pescado da experiência pessoal e universalizado em sua essência, que é o segredo da confecção da crônica, porque senão, do contrário, isso se transformaria em uma espécie de “meu querido diário”, e não é nada disso que esperamos de um cronista, por mais mundano que ele seja, não é assim, madame? A senhora concorda de novo? Ótimo!
Pensava nessas coisas dia desses aqui em casa, quando fui fazer ovos para o almoço. Eu gosto de ovo frito; minha senhora prefere ovos cozidos. Sem problemas, eu julguei-me apto a produzir os dois tipos de ovos ao mesmo tempo, junto ao fogão. Meu ovo frito, gosto dele mal passado, a gema escorrendo dourada sobre o arroz no prato. O ovo cozido, ela prefere ao ponto, durinho, compacto. Muito bem! Fui-me saracoteando o avental rumo ao fogão e voltei de lá à mesa minutos depois com meu ovo frito duro e passado demais e o ovo cozido dela cru, a gema escorrendo. Bem do jeito que ambos não gostamos. Que fazer?

Ora, madame, nada! Cada um comeu seu ovo, pois só faltava agora ovo frito e ovo cozido serem motivo de briga em família! No frigir dos ovos, tudo é questão de saber relevar os pequenos deslizes, conforme prevíamos lá no início. Hein? Poxa, mas a senhora estava concordando até aqui...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 1 de outubro de 2015)

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