segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Chuteira no pé

Uma vez que você aprende a usar adequadamente as chuteiras, a vontade que dá é de que elas nunca mais saiam de seus pés. E tem sentido, afinal, você levou anos de treino e de suor para chegar a esse ponto, ao ponto em que chuteira no pé - no seu pé, especificamente - é sinônimo de gol, de vitória, de performance elogiável, de desempenho favorável. Você calça a chuteira e já sabe que terá, sim, condições de atender às expectativas dos que o cercam, dos que o conhecem e dos que ouvem falar de você, e que sabem das proezas memoráveis de seu pé sempre que enverga chuteiras. Que delícia! Você calça as chuteiras e sai chutando!
Como em todas as áreas de ação no mundo, há chutes e chutes. Há quem chute bem mas o faz apenas por esporte, por hobby. Há quem chute bem por profissão e se destaca entre os demais colegas e concorrentes. Há também quem chute tão bem, mas tão bem, que vira ídolo, estrela, fica famoso e milionário. São os agraciados pela sorte, cujas chuteiras reluzem a ouro. Calçar as chuteiras e chutar bem, com seriedade, foco, competência e zelo, é obrigação pessoal de todos os que se propõem a fazê-lo profissionalmente. Se vai calçar chuteira e sair chutando como meio de ganhar a vida, tem de chutar com sabedoria. Chute a esmo, atabalhoadamente, de forma descompromissada, só se admite aos diletantes do chute, para quem as chuteiras não representam parte fundamental de suas essências de vida.
Mas tem uma coisa muito importante nesse negócio de calçar as chuteiras e chutar, e é preciso estar atento a esse detalhe. Nossa capacidade de chutar vai arrefecendo com o passar do tempo, com a chegada inexorável da velhice. Frente a isso, é sábio saber detectar a hora de pendurar as chuteiras, a fim de não colocar por água abaixo toda uma longa carreira brilhante e vitoriosa, repleta de gols, por simplesmente não ter a noção de que chegou a hora de parar. Insistir em seguir chutando quando nosso pé não possui mais a mesma força de antanho e nossa visão não consegue mais focar corretamente a direção do gol é o mesmo que implodir a própria biografia, porque corre-se o risco de, na posteridade, passarmos a ser lembrados somente pelos equívocos cometidos na reta final de nossas carreiras, quando as chuteiras já deveriam ter dado lugar ao conforto e ao merecido descanso das pantufas.

Saber chutar com as chuteiras é vital. Saber a hora de pendurá-las é longevo.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 23 de novembro de 2015)

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