sexta-feira, 22 de abril de 2016

Nada mais que um dia a mais

Ontem foi mais um dia na soma de todos aqueles que até aqui perfazem os dias de minha existência. Amanhã será outro. O de hoje já começou a mil, ainda antes de eu perceber e, quando embarquei nele, o sol já trabalhava há horas, os passarinhos já haviam celebrado a alvorada, os ônibus já tinham colhido as gentes nas paradas, os trabalhadores da construção civil já se distribuíam pelos andares dos prédios a serem concluídos, os estudantes já escutavam seus mestres nas salas de aula, os semáforos organizavam o fluxo dos automóveis em todas as esquinas, as babás estavam nas creches, os vigilantes noturnos já vestiam os pijamas em casa e punham-se a dormir, os varredores e varredoras varriam as calçadas, as padarias desovavam o pão quentinho e as cafeterias serviam expresso e pão de queijo para a clientela apressada e acordante.
E eu dedicava-me a viver um dia a mais nos dias de minha existência. Mas um dia a mais jamais se reduz a apenas um dia a mais. Cada dia a mais é muito mais do que somente mais um dia, porque cada dia, em si, é um presente recebido pela vida e nem sempre nos damos conta da dimensão desse regalo vital com que somos agraciados. Quando estamos doentes, quando nos recuperamos de uma doença preocupante, quando vencemos um obstáculo terrível, quando algum ente querido morre, aí sim, abrimos nossa consciência para a percepção do valor de vivermos mais um dia, mesmo que seja um simples e corriqueiro dia como todos os outros, esses dias de terça-feira, de quarta-feira, de segunda ou sexta, esses dias banais acotovelados de contas a pagar, tarefas a cumprir, compromissos a honrar, trânsito a enfrentar, crises a administrar, cansaços a domesticar, esses dias mesmo, cada um deles, tão vitais, tão únicos, tão importantes.

Ontem foi um desses dias, hoje é outro. Dias que permitem encher os pulmões de ar, vislumbrar as luzes do cenário ao redor, espiar nuvens, molhar-se com chuva, derreter com calor, reclamar do tempo, ver gente, falar com gente, pensar coisas loucas, sonhar com a loteria, gargalhar com uma criança e gargalhar como uma criança, zangar-se, curtir alguém, tomar um cafezinho, pegar o ônibus, dirigir o carro, fazer um happy hour, recusar um convite com uma desculpa furada e ficar em casa vendo tevê, rever um amigo, almoçar num bufê a quilo, ver um filme, ler um livro, navegar na internet. Cada dia assim é um imenso presente. Ganhamos 365 presentes desses por ano. Lembramos de agradecer por dois ou três. Somos mesmo uma gente muito distraída.
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 22 de abril de 2016)

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