quinta-feira, 28 de abril de 2016

Ser para ter e ter para ser

Que o mundo ao nosso redor anda a cada dia que passa mais e mais materialista, isso é uma verdade indiscutível. O ter se sobrepõe ao ser e as pessoas passam a ser seres que só agem em função desse ter. Deixamos aos poucos de sermos seres para sermos teres. Ser para ter é o lema da vida nas sociedades ocidentais modernas. E, na via inversa, é o ter que determina o quanto se pode ser.
E não se trata só de ter bens materiais, físicos, palpáveis, compráveis e vendíveis. Não. A fórmula do ter para ser é mais abrangente e implica também obter poder para comandar, para ostentar, para oprimir, para humilhar, para sobrepujar, para burlar as leis e as regras incolumemente, para dar carteiraço, para poder aplicar o chavão “você sabe com quem está falando”? A resposta que o sujeito espera quando profere esse mantra selvagem é: “estou falando com quem pode”. Porque quem pode, pode, né. Quem não pode, se sacode. Vivemos a era do ter para ser e do poder fazer com que se sacudam ao nosso redor. “Tenho, logo, existo”. “Tenho”, aqui, significa ter mais coisas do que os outros (e mais caras, mais lindas), ter mais possibilidades do que os outros, ter mais poderes, ter mais admiração (a admiração é um sentimento democrático e não-seletivo, basta ver que assassinos psicopatas também conseguem ser admirados por seus pares), ter mais chance de impor suas vontades e seus desejos sobre os demais, sobre a sociedade toda, se for possível.
Até mesmo o saber, a busca legítima por conhecimento e autodesenvolvimento, passa a ser perseguido como meta para exercer poder pessoal sobre os demais. Almeja-se obter um olho na terra dos cegos para entre eles virar rei. Não é o altruísmo e a vocação para atuar pelo bem comum que movem a maioria das pessoas a ingressar nos cargos públicos e a concorrer a postos eletivos, mas, sim, a chance escancarada de, dessa maneira, “se arrumar” na vida. Exceções? Sim, existem. Pena que pregam sozinhas no imensurável deserto de almas em que a sociedade se transforma em todas as suas esferas.

Descobri que há algumas filosofias orientais que têm como premissa a crença de que tudo é ilusório nesse mundo, nessa existência. A matéria é ilusória, os seres, as coisas, nada existe de fato. Vivemos presos a uma ilusão criada pelos sentidos, que detectam apenas os efeitos da matéria. Daí a doença essencial da alma, que nos desvia da verdade. Vou adotar essa filosofia, pois só assim para me convencer de que não existem o Eduardo Cunha, nem o Jair Bolsonaro, nem o Tiririca, nem...
(Crônica publicada no jornal Pioneiro em 28 de abril de 2016)

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